domingo, 22 de maio de 2011

Negra Devoção

Anderson José Machado de Oliveira
Professor do Instituto de Aplicação da UERJ, das Faculdades Integradas Campo-Grandenses e doutor em História com a tese Os santos pretos carmelitas: culto dos santos, catequese e devoção negra no Brasil colonial (UFF, 2002).


“Lá vem o meu parente”, exclamou um velho negro ao avistar, numa procissão, a imagem de um santo de lábios grossos e cabelo encarapinhado. Quem registrou o episódio foi o missionário protestante norte-americano Daniel Kidder, em viagem ao Brasil no século XIX. Talvez para nós, atualmente, a ligação entre santos pretos e homens pretos seja algo natural, fruto de uma identificação quase que necessária. No entanto, o que nos parece corriqueiro hoje fazia parte, no período colonial, de uma estratégia da igreja católica no sentido de tornar cristãos os escravos africanos e seus descendentes. Mais ainda, discipliná-los para encarar a escravidão. Não seria exagero dizer que o reforço do incentivo às devoções foi um elemento fundamental da política oficial de evangelização.
Os santos tornaram-se grandes aliados da Igreja para atrair novos devotos pois eram representações de pessoas comuns, por isso mais próximas dos fiéis – e, principalmente, obedientes a Deus e ao poder clerical. Nomeando e protegendo diversos lugarejos, suas imagens chegavam às localidades mais distantes, muitas vezes antes dos próprios padres. Contando e estimulando o conhecimento sobre a vida dos santos, a Igreja transmitia aos fiéis os ensinamentos que julgava corretos e que deviam ser imitados por escravos que em geral traziam outras crenças de suas terras de origem, muito diferentes das que preconizava a fé católica.
A intensificação do tráfico de escravos, no século XVIII, transformara os africanos e seus descendentes no maior contingente populacional da Colônia. Para os proprietários, isto aumentava a capacidade produtiva e os lucros, mas trazia preocupações na mesma escala. Desde o final do século anterior, a guerra contra o Quilombo de Palmares, na capitania de Pernambuco, despertara preocupações nas elites senhoriais, interessadas em estabelecer um maior controle sobre a população cativa. Diante destes fatos, na sua função de legitimadora da ordem social, a Igreja não descuidou de apresentar aos negros modelos de santidade que exemplificassem o cultivo das virtudes cristãs e obediência ao poder. Os que mais se podiam se identificar com os escravos eram, evidentemente, os santos de sua etnia.
Tida por alguns como santa, a ex-escrava Rosa Egipcíaca pareceu, por um momento, atender a tal propósito. Ela nasceu na Costa da Mina, África, em 1719, tendo chegado ao Brasil em 1725. Viveu entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro até 1762, quando foi presa e enviada a Lisboa aos cuidados da Inquisição, sob acusação de embuste e heresia. Como nos relata o antropólogo Luiz Mott, padres franciscanos queriam que a beata negra, por suas virtudes religiosas, se transformasse num modelo para as “gentes de cor” do Brasil. Seu afastamento dos dogmas da Igreja resultou entretanto no fracasso do projeto. Apesar de Rosa, a Igreja, no seu trabalho catequético, podia sempre contar com outros santos pretos, estes devidamente reconhecidos pela Igreja e acima de qualquer suspeita, com grande aceitação entre os escravos. São eles São Benedito, Santo Antônio de Categeró, ou de Noto, Santo Elesbão e Santa Efigênia.
As vidas desses santos eram divulgadas em obras de grande difusão na Colônia. Em 1744, frei Apolinário da Conceição, da Ordem do Frades Menores, publicou Flor Peregrina por Preta, ou Nova Maravilha da graça, descoberta na prodigiosa vida de São Benedito de S. Filadélfio. Religioso leigo da Província Reformada da Sicília, das da mais estreita Observância da Religião Seráfica. O título pomposo pretendia trazer à luz a virtuosa vida de São Benedito. Nascido em Lisboa, frei Apolinário tinha consciência da importância da escravidão para o desenvolvimento da Colônia. Segundo ele próprio, um dos objetivos da sua obra era apresentar aos negros um santo que com eles se identificasse pela sua condição étnica.
São Benedito, o santo biografado, seria filho de escravos africanos. Teria nascido em 1524, na aldeia italiana de São Fratello, na Sicília, e servido como cozinheiro, despenseiro e guardião no convento franciscano de Palermo. Assistia os pobres distribuindo entre eles os víveres que retirava da despensa do convento. Para frei Apolinário, “apesar da cor preta”, foram as virtudes de São Benedito que o conduziram à santidade. O santo morreu em 1589, tendo seu culto principiado no Brasil antes da sua canonização, em 1807.
Em 1726, o padre secular e irmão terceiro franciscano José Pereira Baião publicou a História das prodigiosas vidas dos gloriosos santos Antônio e Benedito, maior honra e lustre da gente preta. Padre José era natural de Gondolim, Bispado de Coimbra. No prólogo da obra justificava a divulgação das vidas de São Benedito e de Santo Antônio de Noto como um serviço de estímulo à fé, afirmando: “O mesmo fruto espero em Deus que há de causar nos fiéis destes dois gloriosos Santos Pretos Antônio e Benedito, especialmente nos de sua cor...”.
De modo semelhante ao que fez frei Apolinário, a narrativa dirigia-se com ênfase a um público específico. Destacava-se neste trabalho a vida de outro expoente entre os santos pretos, Santo Antônio de Noto. Este, segundo Padre José, era originário da Guiné, filho de pais mouros e, portanto, nascido e criado na lei de Maomé. Levando em conta esta origem, de acordo com a narrativa, foi uma felicidade para Antônio ter sido vendido como escravo para a Sicília, pois com isso teve a oportunidade de conhecer o cristianismo e livrar-se da “infidelidade” muçulmana. Na escravidão, abjurou (ou seja, renunciou) de bom grado ao islamismo e tomou o nome de Antônio, em homenagem ao Santo Antônio de Lisboa. Sua vida foi marcada pelas virtudes da temperança, penitência, docilidade e trabalho. Alforriado, tornou-se irmão terceiro de São Francisco, ou seja, membro de uma “ordem terceira”, associação de homens piedosos que não eram monges, sendo tributados a ele inúmeros milagres em vida e após sua morte, ocorrida em 1549.
Os dois últimos expoentes pretos da corte celeste tiveram suas vidas contadas pelo carmelita frei José Pereira de Santana. Sua obra, Os Dois Atlantes de Etiópia. Santo Elesbão, Imperador 47° da Abssínia, Advogado dos Perigos do mar e Santa Efigênia, Princesa da Núbia, Advogada dos incêndios dos edifícios. Ambos Carmelitas, foi publicada em dois volumes, o primeiro em 1735, dedicado à vida de Elesbão, e o segundo, em 1738, dedicado à vida de Efigênia. Frei José era natural do Rio de Janeiro, tendo sido ordenado no Carmo da cidade, posteriormente obtendo o doutorado em Teologia, em Coimbra. A carreira do frade ainda seria laureada com a ocupação dos cargos de Qualificador do Santo Ofício, Cronista Oficial do Carmo e confessor e preceptor das filhas de d. José – rei de Portugal (1750-1777). Era certamente uma figura importante e conhecedora das questões fundamentais ao império português, dentre elas a escravidão.
Segundo o frade, Santo Elesbão era natural da Etiópia, tendo sido o 46° neto do rei Salomão e da rainha de Sabá. Imperador de seu país no século VI, creditou-se a ele a extensão do reino cristão da Núbia até o lado oposto do Mar Vermelho, no que se impôs aos árabes e judeus do Iêmen. Entre os judeus teria nascido uma rebelião comandada por um rei chamado Dunaan, o qual foi vencido por Elesbão numa expedição punitiva, visando ao restabelecimento da ordem cristã. Também Santa Efigênia pertencia à nobreza. Princesa da Núbia, teria sido convertida ao cristianismo e batizada pelo apóstolo Mateus. Indiferente aos prazeres mundanos e aos requintes da corte, tornou-se religiosa, fundando um convento, tendo terminado sua vida santamente, à frente da comunidade religiosa por ela fundada. A história de Efigênia ainda seria divulgada, em 1742, pelo missionário apostólico padre Antônio de Oliveira, que escreveu, inspirado na obra de frei José Pereira de Santana, a Novena da Bem Aventurada Virgem Sta. Ifigênia. Princesa da Núbia e Fênix da Etiópia.
As irmandades – instituições leigas devocionais e assistenciais - feitas para cultuar esses santos também tiveram grande importância na divulgação das histórias e foram inúmeras que se formaram em toda Colônia. No Rio de Janeiro, em 1740, os pretos mina organizaram a irmandade em louvor a Elesbão e à Efigênia. Na mesma cidade, os pretos angola cultuavam São Benedito, juntamente com Nossa Senhora do Rosário. Em Minas Gerais, desde o início do século XVIII, Santa Efigênia, Santo Elesbão, São Benedito e Santo Antônio de Categeró eram cultuados nas duas irmandades do Rosário dos Pretos existentes em Vila Rica. Uma delas, que tinha sua igreja na localidade do Alto da Cruz, está ligada à lenda do Chico Rei. Segundo a lenda, soberano na África e escravo em Minas Gerais, no século XVIII, teria conseguido libertar seu povo do cativeiro com o ouro que os negros escondiam nos cabelos e posteriormente depositavam numa pia de pedra existente na Igreja do Rosário do Alto da Cruz, conhecida como Igreja de Santa Efigênia. Este seria o motivo da devoção de Chico Rei à santa, pois ela o teria ajudado a cumprir sua missão.
Em Olinda, os negros da Irmandade do Rosário também cultuavam Santo Elesbão. Na Bahia, o culto à Santa Efigênia tinha lugar na Irmandade do Rosário dos Pretos de Salvador, enquanto que Santo Antônio de Categeró tinha sua irmandade, desde o final do século XVII, formada por crioulos (descendentes de africanos nascidos no Brasil) e angolas, na Igreja de São Pedro de Salvador. Em Traíras, Goiás, também se registra, entre os pretos, o culto de Santa Efigênia. Aliás, com relação a este culto, o viajante austríaco Emanuel Pohl, em 1819, ficou bastante impressionado com a festa organizada pelos devotos que, ricamente ornados e montados a cavalo, carregavam a bandeira com a imagem da santa, num cortejo marcado pelos disparos de morteiros e ao som de instrumentos de origem africana. Nas palavras do viajante, carregadas de juízo de valor: “A horrível gritaria, que chegava até nós, não nos deixou pregar os olhos durante toda a noite”.
O depoimento de Pohl nos deixa perceber que a estruturação do culto pelos negros nem sempre seguiu os rigores recomendados pela Igreja, principalmente no que diz respeito à mescla entre as tradições religiosas católicas e aquelas de origem africana. Por ora, sem menosprezar estes fatos, é importante chamar a atenção de que havia, por parte da Igreja, objetivos bem nítidos ao propagandear a vida dos santos pretos.
Um fio condutor unia essas biografias. Primeiramente, deve-se atentar para o discurso em relação à cor. Ser “preto”, na sociedade colonial, designava, além da cor da pele, um lugar social, que indicava uma proximidade maior com a esfera do trabalho e a ascendência africana. Geralmente o termo preto designava o escravo africano. Não só os escravos, mas também os libertos com recente passado escravo, eram incluídos na categoria de pretos – os chamados “pretos forros”. Santo preto, neste sentido, identifica um grupo de fiéis para os quais era idealizado como modelo de vida.
A África é outro ponto de união dessas histórias. O continente, por vezes retratado de forma bastante imprecisa, aparece nas narrativas como terra de mouros, lugar de pecado. Mas, por outro lado, também podia ser o lugar que gerava servos fiéis a Cristo e à sua Igreja. Benedito, Antônio, Elesbão e Efigênia seriam exemplos desta segunda África. Em torno de tal ambivalência se construiu um modelo de África com o qual se desejava que os africanos e seus descendentes se identificassem – ou seja, não o lugar do tráfico de escravos ou das culturas ancestrais tão abominadas pelo catolicismo, mas uma África fiel e compromissada com o cristianismo ocidental.
Este compromisso estaria firmado na própria vida daqueles santos: todos eram virtuosos, além de obedientes e defensores da Igreja. A resignação que demonstravam diante dos desígnios divinos deveria ser um espelho para os seus devotos. Aliás, neste ponto, as histórias desses santos coincidiam com os conselhos que, em 1633, o jesuíta Antônio Vieira formulou para os escravos no Sermão XIV do Rosário: a escravidão era uma forma de resgate dos pecados. Aceitar a situação do cativeiro com resignação era aceitar a oportunidade que Deus concedera aos negros de purgar, em vida, as suas penas.
Outro elo entre tais histórias é a presença e o papel dos religiosos mendicantes, notadamente franciscanos e carmelitas, que difundiam pelo Brasil as vidas dos santos negros, sempre representados com as vestes das respectivas ordens. Juntamente com os dominicanos, aquelas duas ordens religiosas se caracterizaram por gerar, desde a Idade Média, muitos especialistas na produção de hagiológios. Deste modo, prestaram inúmeros serviços à Igreja e aos poderes constituídos, na condição de difusores de belos exemplos, destinados à evangelização dos povos. No contexto do império colonial português, ao se dedicarem à tarefa de difundir as vidas dos santos pretos, esses hagiógrafos se tornaram peças importantes, para o Estado e a Igreja, na formulação de soluções para uma questão crucial: a escravidão.

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